quinta-feira, 26 de março de 2009

O Revide do Bichano

Magno Madureira*


Nunca havia me preocupado com as crendices populares. Principalmente com a de que gato preto transmite azar. Quando criança, tentei transformar um bichano branco em filhote de onça-pintada, usando pincel e tinta a óleo. Deu azar sim, mas para o coitado do gato que, de tanto lamber a tinta-fresca em seu pêlo acabou morrendo intoxicado. Mas, agora, não só acredito como recomendo: esse mamífero felídeo, quando negro, torna azarado quem o vê. Garanto que não foi por racismo que mudei, foi por experiência ou troco dado pelo bicho branco que sacaneei a óleo.

Meados de fevereiro. Ia gozar alguns dias de férias em Carmésia, 250 quilômetros a Nordeste de Belo Horizonte. Logo na saída, meu ônibus atropelou e matou um gato preto. Uma senhora que estava no banco da frente arregalou os olhos e bateu com a mão três vezes na carroceria para me fazer lembrar da crendice. Perguntei se ela sofria de gatofobia e ela respondeu que não: “tenho a saúde perfeita; o que eu sofro mesmo é medo de gato”. Duas horas depois estávamos em Santa Maria de Itabira, na parada para o lanche. Tentei ajudar obesa e supersticiosa a descer do ônibus e fui arrastado por seu peso e pela maldição do gato falecido. No tombo, fraturei a tíbia da perna direita, como vim a saber mais tarde.

Retomei o ônibus e prossegui viagem. Carmésia não mais estava distante e eu procurava esquecer a dor na perna, lembrando a história da cidade onde nasci. Passei pelo distrito de Ferros conhecido como Borba Gato, que herdou o nome do bandeirante que por lá teria passado. Lembrei-me de que Carmésia fora Viamão até se emancipada em 1960. A 17 quilômetros de lá está o distrito de Achopé. Recordei: os nomes estavam ligados a um felídeo maior, uma onça, que comera um bandeirante conforme a história ouvida no grupo escolar. Borba Gato seria o nome da vítima; Viamão, o local onde encontraram uma de suas mãos (vi-a-mão); Achopé, lógico, onde fora achado um pé deixado pela onça (acho-o-pé). Olhei para minha perna dolorida e pensei: será que ainda há lugar para “Achoperna” ou “Viaperna”? E, pela primeira vez na vida, bati três vezes na madeira, ou melhor, na carroceria do ônibus.

Com minha perna direita cada vez mais dolorida cheguei finalmente a Carmésia. Despedi-me da superticiosa gorda e fui saltar do ônibus com a sacola. Dessa vez a obesa não teve culpa. Fui ao chão sozinho, ouvindo um pequeno estalo e sentindo a dor aumentar. Logo depois veio o diagnóstico do doutor José Antônio, único médico da cidade: o perônio da mesma perna direita não resistiu com a companhia da tíbia e estava também fraturado. Teria que por fim às férias planejadas há tanto tempo e retornar no dia seguinte a Belo Horizonte, numa confortável ambulância. Foi o que fiz e procurei os cuidados especiais de um ortopedita/traumatologista doutor Arnóbio Moreira Félix. Passei pelos seguintes tratamentos: “redução incruenta de fratura dos ossos da perna”, “imobilização gessada” e “artrocentese do joelho”.

Depois de todos os procedimentos médicos e já refeito da anestesia, agucei a curiosidade para conhecer melhor o doutor Arnóbio. Além de atender no Socor e outros hospitais de Belo Horizonte, ele é ortopedista/traumatologista do América Futebol Clube e do Exército (onde tem a patente de tenente-médico), na Capital. Com esses créditos, ele me acalmou até recomendar “acompanhamento cardiológico”, sob o argumento que eu havia passado por crise hipertensão arterial no bloco cirúrgico (pressão de 230x14). Também pudera: da sala ao lado escutei, antes do anestesiado e por meia-hora, barulhos de uma serralheria: erram serras, martelos e outros instrumentos de ferro usados na cirurgia do paciente vizinho.

Das dores, da crença na sabedoria popular e dos sustos ficaram a recomendação da licença médica por 120 dias e uma feliz constatação: o doutor Arnóbio não é apenas médico, pois longe dos blocos cirúrgicos ele se apresenta há anos – antes mesmo da faculdade de medicina – como “mágico profissional”. Tira coelhos de cartolas para animar festas infantis. Não era por acaso que ele estava – e continua – no América, time que tem um goleiro chamado Milagres. Ou também no Exército de um País que não vive de guerras, embora tenha muitos gatos, de quatro e dois pés. E, ao pensar nisso, fiquei tranqüilo, mesmo com um metro de gesso no membro inferior direito e ouvindo uma animadora enfermeira prever: “Em breve você estará esperto como um gato”.


* Jornalista PRC

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