quinta-feira, 26 de março de 2009

O Revide do Bichano

Magno Madureira*


Nunca havia me preocupado com as crendices populares. Principalmente com a de que gato preto transmite azar. Quando criança, tentei transformar um bichano branco em filhote de onça-pintada, usando pincel e tinta a óleo. Deu azar sim, mas para o coitado do gato que, de tanto lamber a tinta-fresca em seu pêlo acabou morrendo intoxicado. Mas, agora, não só acredito como recomendo: esse mamífero felídeo, quando negro, torna azarado quem o vê. Garanto que não foi por racismo que mudei, foi por experiência ou troco dado pelo bicho branco que sacaneei a óleo.

Meados de fevereiro. Ia gozar alguns dias de férias em Carmésia, 250 quilômetros a Nordeste de Belo Horizonte. Logo na saída, meu ônibus atropelou e matou um gato preto. Uma senhora que estava no banco da frente arregalou os olhos e bateu com a mão três vezes na carroceria para me fazer lembrar da crendice. Perguntei se ela sofria de gatofobia e ela respondeu que não: “tenho a saúde perfeita; o que eu sofro mesmo é medo de gato”. Duas horas depois estávamos em Santa Maria de Itabira, na parada para o lanche. Tentei ajudar obesa e supersticiosa a descer do ônibus e fui arrastado por seu peso e pela maldição do gato falecido. No tombo, fraturei a tíbia da perna direita, como vim a saber mais tarde.

Retomei o ônibus e prossegui viagem. Carmésia não mais estava distante e eu procurava esquecer a dor na perna, lembrando a história da cidade onde nasci. Passei pelo distrito de Ferros conhecido como Borba Gato, que herdou o nome do bandeirante que por lá teria passado. Lembrei-me de que Carmésia fora Viamão até se emancipada em 1960. A 17 quilômetros de lá está o distrito de Achopé. Recordei: os nomes estavam ligados a um felídeo maior, uma onça, que comera um bandeirante conforme a história ouvida no grupo escolar. Borba Gato seria o nome da vítima; Viamão, o local onde encontraram uma de suas mãos (vi-a-mão); Achopé, lógico, onde fora achado um pé deixado pela onça (acho-o-pé). Olhei para minha perna dolorida e pensei: será que ainda há lugar para “Achoperna” ou “Viaperna”? E, pela primeira vez na vida, bati três vezes na madeira, ou melhor, na carroceria do ônibus.

Com minha perna direita cada vez mais dolorida cheguei finalmente a Carmésia. Despedi-me da superticiosa gorda e fui saltar do ônibus com a sacola. Dessa vez a obesa não teve culpa. Fui ao chão sozinho, ouvindo um pequeno estalo e sentindo a dor aumentar. Logo depois veio o diagnóstico do doutor José Antônio, único médico da cidade: o perônio da mesma perna direita não resistiu com a companhia da tíbia e estava também fraturado. Teria que por fim às férias planejadas há tanto tempo e retornar no dia seguinte a Belo Horizonte, numa confortável ambulância. Foi o que fiz e procurei os cuidados especiais de um ortopedita/traumatologista doutor Arnóbio Moreira Félix. Passei pelos seguintes tratamentos: “redução incruenta de fratura dos ossos da perna”, “imobilização gessada” e “artrocentese do joelho”.

Depois de todos os procedimentos médicos e já refeito da anestesia, agucei a curiosidade para conhecer melhor o doutor Arnóbio. Além de atender no Socor e outros hospitais de Belo Horizonte, ele é ortopedista/traumatologista do América Futebol Clube e do Exército (onde tem a patente de tenente-médico), na Capital. Com esses créditos, ele me acalmou até recomendar “acompanhamento cardiológico”, sob o argumento que eu havia passado por crise hipertensão arterial no bloco cirúrgico (pressão de 230x14). Também pudera: da sala ao lado escutei, antes do anestesiado e por meia-hora, barulhos de uma serralheria: erram serras, martelos e outros instrumentos de ferro usados na cirurgia do paciente vizinho.

Das dores, da crença na sabedoria popular e dos sustos ficaram a recomendação da licença médica por 120 dias e uma feliz constatação: o doutor Arnóbio não é apenas médico, pois longe dos blocos cirúrgicos ele se apresenta há anos – antes mesmo da faculdade de medicina – como “mágico profissional”. Tira coelhos de cartolas para animar festas infantis. Não era por acaso que ele estava – e continua – no América, time que tem um goleiro chamado Milagres. Ou também no Exército de um País que não vive de guerras, embora tenha muitos gatos, de quatro e dois pés. E, ao pensar nisso, fiquei tranqüilo, mesmo com um metro de gesso no membro inferior direito e ouvindo uma animadora enfermeira prever: “Em breve você estará esperto como um gato”.


* Jornalista PRC

sábado, 21 de março de 2009

Sr. Síndico

Sr. Síndico,

cachorros. 2. O dicionário Aurélio, da Lígua Portuguesa, classifica como “cachorrada” aquilo que é 1. “sf – Bando de Ação de cachorro”.

Pois bem.

Estamos enfrentando uma verdadeira “cachorrada” em nosso prédio, o que fere não só a Convenção do Condomínio como também o Regimento Interno.

Não estaria contra os caninos, não fossem eles eventuais portadores de algumas doenças, tais como:

Raiva (hidrofobia)

Leishmaniose

Sarna Sarcóptica

Entre outras...

Tais animais latem, rosnam, choramingam, fazem grunhidos que, às vezes – e muito freqüentemente - incomodam. E incomodam muito mesmo. A julgar pelo que está acontecendo, sinto-me no direito de trazer para este Condomínio minha vaca Estrêla e meu boi Fubá.

Assim posto, solicito ao Condomínio providências, ainda que, pelo menos, tais caninos infratores apresentem, pelos proprietários (claro), atestados de vacinação.

Agradecido,

José Magno S. Madureira

Apartamento 102.

domingo, 15 de março de 2009

Discurso

Senhoras e senhores membros do Executivo,
Senhoras e senhores membros do Legislativo,
Senhoras e senhores membros do Judiciário,
Autoridades militares,
Autoridades eclesiásticas,

Boa tarde a todos.

Não quero que me mandem fazer o que não quero.
Não quero que estabeleçam leis para eu cumprir.
Não quero que me julguem ou condenem pelo o que não fiz ou não faço.
Não quero que me ordenem marchar contra o que defendo.
Não quero que me façam rezar o credo que não é de minha crença.

Quero que me respeitem.
Que saibam que cumpro apenas o que é, não lei, mas racional.
Que saibam que não invento leis nem posso cumprir as que são inventadas segundo as conveniências.
Que não aceito julgamento ou condenação de tribunais irracionais.
Que não sei marchar nem cumprir ordens absurdas.
Que não rezo para o santo inimigo ou desconhecido.

Saibam que eu quero ser feliz.
Saibam que insistirei neste propósito.
Saibam que, por mais que houver insistência, eu serei eu e minha trincheira será sempre
A minha mente !!!

Senhoras e Senhores,

Que sigam para a PUTA QUE PARIU !!!

Magno Madureira

sexta-feira, 13 de março de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (VI)

Cresceu a popularidade de Vitalino em um mês e ele se aproveitou. Chegou a anunciar que iria se matar, “de jeito lento para deixar saudades”. E voltou a frequentar o bar do Leci, de onde nunca saiu. A cada pinga bebida, dizia ter diminuído um minuto da vida. Só nos primeiros dias ele somou: “24 horas têm 1.440 minutos. Então hoje já envelheci 2.880 minutos”. Ou seja, a contabilidade do Leci não deixava margem de erro: eram duas talagadas por minuto. A conta, mais uma vez, seguia para a prefeitura da República Atrevida do Viamão, onde Vitalino só teve o cuidado de não nomear tesoureiro, ou qualquer outro funcionário que pagasse contas.

O anúncio da morte premeditada de Vitalino comoveu a cidade. Padre Antônio chegou a implorar, mas o prefeito foi em frente, seguindo um plano muito bem traçado. “Morreu” numa segunda-feira e mandou que a notícia fosse espalhada. No terceiro dia, de avental branco, reapareceu na Praça do Carmo, anunciando o milagre da ressurreição. As beatas fizeram fila, organizadas por Dona Grossa. Vitalino escolheu um grupo de moças como “filhas de Maria”. E sua pregação, que antes era feita no templo nada santo, foi transferida para a igreja do padre Antônio. “Está declarada a sucursal do Vaticano, e esse que vos fala, nomeado o sumo-pontífice adjunto”, anunciou na primeira missa que celebrou.

Esperto que era, Padre Antônio retomou a disputa com Vitalino, sem agressões, pelo menos nos primeiros dias. Mandou construir um busto do desafeto e fez com que ele fosse entronizado na igreja do Carmo. No pedestal, escreveu: “Aqui está o milagre da ressurreição. O benfeitor Vitalino grandifica nosso Viamão”. Uma rima barata que irritou o prefeito impostor, e por isso mesmo motivou uma resposta escrita também no pedestal: “Se o padre quer puxar o saco, que puxe o de seu pai. Pois o meu, de tanto ser usado, se puxado logo cai”. O prefeito desenhou um grande órgão genital masculino sob a inscrição e, abaixo dele colocou um saco de farelo de milho com um bilhete: “Ração para aquelas que desejam ver Vitalino sempre ereto”.

Admirado pelas beatas, pelo Padre Antônio e já com o nome colocado em cidades vizinhas, pensou em se candidatar a deputado, governador, “quem sabe?”. Para isso deveria - segundo as normas do Viamão – ser casado e ter filhos legítimos. Foi com esse pensamento que aceitou o pedido do primo Cocota para “pedir a mão de uma moça”. Ao vê-la, disparou o prefeito: “O sobrinho quer se casar, mas está muito jovem e pode esperar. Por isso, peço a mão de Guadalupe, sua noiva, inteiramente para mim”. Casou-se e, nove meses depois, recebeu os primeiros filhos, trigêmeos. “Foram feitos em pé, se estivesse feitado, nasceriam pelo menos seis de uma vez só”, zombava sempre.

Tudo corria como Vitalino gostava. Até que da jardineira desceu numa tarde o Doutor Vidigal, nomeado interventor pelo governo do Estado e com a incumbência de por fim à República Atrevida. Vitalino foi deposto do cargo de prefeito, para o qual nunca fora eleito. E num rompante, entre dois soluços, ainda conseguiu ditar para a secretária Maria Tu a mensagem de despedida, que era ao mesmo tempo de lançamento de sua candidatura nas eleições seguintes: “Viamão é uma República Atrevida. E que nenhum tribunal se atreva a mandar nela. Viamão é uma cidade vadia. Por isso voltarei a governar essa ruela”.

De volta à iniciativa privada, faltou salário a Vitalino. Ele descobriu o Beltrão como sócio: entraria como provador e o parceiro como fabricante de cachaça. Além disso, o ex-prefeito impostor seria o propagandista da aguardente que recebeu o nome de “Sonhei com ela”, numa alusão aos pesadelos vividos por Vitalino quando lhe faltava o líquido. Ou mais precisamente, quando batia a síndrome de abstinência, diagnóstico ouvido tantas vezes do Doutor Élcio. Na primeira investida, o sócio agradou Beltrão, mesmo bêbado como se encontrava, e criou um rótulo para a “Sonhei com ela”, que coube até um versinho barato:

“A vida é um lago tristonho onde o barco de meu sonho anda vagando a esmo. Mas a vida fica bela, bebendo “Sonhei com ela”, com ela sonhando mesmo”. A poesia agradou e entusiasmou o poeta que decidiu “comprar briga” com o coronel Juca de Barros, rico fazendeiro conhecido pela fama de bravo. Na direção de Juca partiu outro verso: “Juca é feito de barro, de barro fino e batuta, mas esse coronel sempre foi um grande filho da puta”. Esse agradou até mesmo padre Antônio, também criticado em verso igualmente barato: “Seu vigário usa batina para facilitar o seu trabalho. Enquanto ele finge que reza, a beta pela em seu caralho”.

O padre era alvo principal de Vitalino. Gordo, com grandes cabelos nas ventas, o vigário aproveitava os domingos para almoçar melhor. Ou mais do que o costume. Quando terminava a missa das nove e anunciava o “vão com Deus e o Senhor vos acompanhe”, só esperava os fiéis darem as costas para o altar. Aí gritava, quase histérico: “Irmãos, agora vocês vão para as suas casas, um vai comer frango com quiabo, outro uma leitoa e outro um lombinho. Não se esqueçam de dar graças a Deus. Afinal esse padre vai comer angu com banana, mas vai dar graças a Deus”. Em seguida, fazia uma pausa na sacristia, tempo suficiente para chegar à casa paroquial e lá encontrar uma enorme fila de beatas com diferentes pratos domingueiros. Foi num desses domingos que Vitalino interceptou as beatas e temperou as iguarias com um produto laxante. À noite, se divertiu com os gemidos de Padre Antônio na fossa da casa paroquial.

FIM

terça-feira, 10 de março de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (V)

Toda a cidade já estava acostumada com os projetos absurdos de Vitalino. Mas ninguém poderia imaginar que ele viesse decretar o único carrinho de pedreiro como “veículo oficial número Um”. A “viatura”, como costumava definir, era empurrada por Leci, e passava o dia estacionada nas portas do bar do condutor. À noite, com Vitalino devidamente deitado, ela seguia para a rua da Olaria, onde o prefeito era despejado. No trajeto, fazia escala numa estação montada sob a janela do padre Antônio, onde Vitalino cantava seus desaforos, como esses: “Ô seu vigário, seu grande filho da puta. Está chupando a Aurora, como se ela fosse fruta”. O vigário não interrompia o trabalho, não dava ouvidos a Vitalino em troca de Aurora, uma beata que cuidava da batina e do que ela escondia.

Foi assim até o dia em que Vitalino apelou. Avisou os amigos que iria se confessar. E logo com o padre Antônio. Era já o segundo da fila, quando o vigário avisou que iria embora. “Mas eu só quero a extrema unção”, imporou Vitalino. Isso o padre daria até de graça, e resolveu atender ao prefeito. “Confesse seus pecados”, ordenou. “Não estou aqui para fazer confissão, mas para ouvir uma: qual de minhas três sobrinhas o padre está comendo?”. A resposta foi um engasgo, e o prefeito interpretou: “Já sei, são as três. Obrigado”.

A cada dia o padre Antônio aumentava sua ira por Vitalino. E não era para menos. Na madrugada mais fria que o Viamão já viveu, o vigário acordou com os sinos badalando em ritmo desafinado. Vestiu a batina, cobriu a meiga Aurora e atravessou a Praça do Carmo. Debaixo da torre da igreja lá estava a jumentinha do Aniceto, amarrada com as cordas que ligavam aos badalos dos sinos. “Isso só pode ser coisa do Vitalino”, disse o padre. O prefeito ouviu tudo e saiu de uma moita onde havia se escondido. Com ele estava um fotógrafo, e enquanto o padre Antônio tentava soltar a jumentinha, ali com a batina desarrumada, Vitalino ordenava ao retratista:

“Tire o retrato do padre. A cidade deve saber que também ele está comendo a jumentinha do Aniceto”. Na manhã seguinte o Viamão já sabia da vigarice do padre Antônio. Cartazes anunciavam pelos bares e até na zona: “Esse padre ninguém mais agüenta. Depois de comer todas as mulheres, não perdoa nem mesmo a jumenta”.

A concorrência entre o padre e o prefeito tornava-se a cada dia mais acirrada e Vitalino decidiu abrir uma “igreja”. Convenceu um caixeiro viajante a ser seu auxiliar, o “irmão Daluz”. Alugou um pequeno galpão, fez nas oficinas da prefeitura alguns bancos e pôs-se a celebrar. Antes, recomendou a um eletricista que as luzes do templo deveriam ser apagadas por uma tomada da porta ou por outra colocada num quarto localizado nos fundos. Era de lá que Vitalino tirava os pecados das “ovelhas”. Ao se interessar por uma, gritava que o Cristo estava na porta e não entrava na presença de uma pecadora. Essa era escolhida e recebia ordens para ir ao quarto dos fundos. O auxiliar Daluz apontava a tomada da porta da frente e pedia que o Cristo a apagasse. Mas era lá de dentro, já na cama com a pecadora, que Vitalino interrompia a ligação.

A estratégia deu certo por algum tempo. E Vitalino quase conseguiu seu objetivo, que era o de ter mais filhos no Viamão do que o padre Antônio. Tudo ia bem, pelos cálculos do prefeito. Ele já possuía um catálogo onde as pecadoras, mediante uma tabela, a cada dia poderiam ser identificadas: se estavam menstruadas, no cio ou grávidas. Mas na escuridão que precedia a “lavagem” das pecadoras, numa sexta-feira, embriagado como sempre, o prefeito-pastor se perdeu entre os bancos e acabou arrastando para o quarto o Joaquim Pé-de-Mesa, um mulato forte e bom de briga. Foi a maior briga que Viamão já assistiu. E que comprovou que muitos já sabiam: o templo de Vitalino não era mesmo santo.

Terminada a contenta, Vitalino foi ameaçado de expulsão do Viamão. Mas ficou pé lá com um argumento atirado contra o principal adversário, padre Antônio. Com um cartaz grotesco, postou-se nas escadarias do Carmo, anunciando que faria a contagem de quantas “foram as mulheres comidas pelo vigário”. Prometia mais no cartaz: “Darei o nome da adúltera em praça pública”. A igreja, por duas semanas, ficou vazia, e nem mesmo o sacristão Leonel apareceu por lá. Diante do isolamento imposto pelas ameaças, o padre implorou e a Câmara dos Vereadores decidiu arquivar o pedido de expulsão do Vitalino. De vilão, o prefeito impostor passou a benfeitor e voltou a circular livremente pelo Viamão, estudando novas trapalhadas.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (IV)

A troca de insultos corria na cidade. E Vitalino logo percebeu que deveria colocar um paradeiro naquela baixaria. Nomeou Maria Tu, a velha prostituta para o cargo de ouvidora-mor. Era preciso que alguém de boa reputação colocasse ordem na casa, no Viamão. O primeiro ato da ouvidoria foi baixado no mesmo dia da nomeação: “Nenhum cidadão dessa República Atrevida, administrada por José Vitalino Luiz dos Santos. Poderá, de agora em diante, usar ou abusar da jumentinha do Aniceto. Significa, pelo exposto no inciso primeiro deste decreto, que a jumentinha não poderá mais concorrer com as mulheres do Viamão. Cada cidadão que for flagrado conquistando a jumentinha deverá pagar ao Aniceto uma quarta de milho por semana. O cereal será destinado ao animal”.

Por ironia, o delegado Zizito, nomeado guarda da jumentinha do Aniceto, lavrou o primeiro flagrante incriminando Vitalino e seu ajudante André. Enquanto Vitalino “cobria” a jumentinha, André segurava o beiço do animal. E até cumpria ordens do prefeito que, quando ofegante, gritava de trás lá para frente: “Beije ela aí André”. A jumentinha ganhou a quarta de milho, cabresto novo, mas por decisão de Vitalino deveria permanecer no quintal da Prefeitura. Lá, ela e o prefeito estariam salvos de novos vexames. A Câmara dos Vereadores tentou impedir tamanha regalia dada à jumenta, mas Vitalino argumentou: “Benfeitora que é, a jumenta merece até título de cidadã honorária”.

No dia seguinte um projeto chegou à Câmara, assinado pelo chefe do Executivo: “Essa edilidade declara e eu, prefeito da República Atrevida do Viamão prontamente sanciono o presente projeto de lei, que declara cidadã honorária dessas paragens a Jumentinha do Aniceto. Para efeito de comprovação da importância de tal projeto, invoco o testemunho de quantos dela tiraram proveito, e também a coragem dos senhores vereadores, todos dela conhecidos de longa data e muitas noites”, dizia o texto. Numa só reunião o projeto virou lei, em primeira, segunda e terceira votações. A jumentinha foi condecorada e levada ao quintal de Vitalino para as devidas comemorações.

terça-feira, 3 de março de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (III)

Com a fama de cafetão que rapidamente adquiriu, Vitalino descobriu que poderia ser político. Com tantos clientes agenciados e levados ao Morro da Égua, seria praticamente impossível perder uma eleição para prefeito de Viamão. Candidatou-se para a surpresa de todos e a indignação do padre Antônio. “Um cafetão não pode ser prefeito”, dizia o sacerdote. “Então um garanhão nunca poderia ser padre, e nessa cidade tem mais filho do padre do que filho da puta”, rebatia Vitalino.

Veio a eleição, o padre Antônio transformou o púlpito em palanque que, trocou a ladainha pelos comícios e derrotou Vitalino. Ele, porém acordou pensando que estava vitorioso, foi à praça soltou foguetes e decretou a “República atrevida de Viamão”. Nomeou Maria Tu, a prostituta mais velha da cidade como primeira-dama; o açougueiro Lulu para a Secretaria de Abastecimento, e o carroceiro Jorjão para a Secretaria dos Transportes. O garrafeiro e raizeiro Zé Bode foi alçado ao cargo de Secretário da Saúde, e o padre Antônio teve sua prisão preventiva anunciada também por decreto, “em nome dos bons costumes”. Estava composto o governo atrevido de Vitalino, que ocuparia mais tarde o bar do Leci como sede permanente. “O paço municipal”, como foi escrito numa placa improvisada em um pedaço de lata de querosene Jacaré.

Vitalino trocou a pinga por um vermute barato. Passou a usar um surrado terno de linho e adotou o nome completo: “José Vitalino Luiz dos Santos”. Para se mostrar um “imperador democrático”, implantou as audiências comunitárias. Mas tinha pouco gosto por elas, já que não suportava pedidos nem reuniões que envolviam mais de quatro copos em torno de uma mesa. “Aqui estou, putada. Se alguém veio para pedir pode se retirar. Se veio para me presentear com alguma coisa, que fique. Nada recebo dos cofres públicos, apenas o que retiro para o meu sustento”, anunciava a cada abertura de uma audiência comunitária”.

Numa delas foi aplaudido de pé – coisa que nunca tinha vivido na carreira de político, ao anunciar dois projetos que iria enviar à Câmara dos Vereadores: o primeiro legalizava o jogo-do-bicho e obrigava os bicheiros a doar cinco por cento ao prefeito. O segundo, cadastrava as prostitutas e obrigava cada uma delas a doar, também ao prefeito, 20 por cento da “verba” arrecadada. Para justificar tamanha extorção, Vitalino prometeu comprar com dinheiro próprio, “camisinhas vulcanizadas” que seriam distribuídas gratuitamente na zona do Viamão. E, entusiasmado com os aplausos recebidos, ditou logo um telegrama ao governador do Estado:

“Excelentíssimo, comunico-lhe que aqui no Viamão o bicho já corre solto, e as bichas não oferecem mais perigo. O povo joga livremente e não mais trepa perigosamente. Segue um jogo de presente que decretarei premiado, e uma caixa de camisas vulcanizadas. Atenciosamente, José Vitalino Luiz dos Santos”.

Logicamente o governador não respondeu. Mas Vitalino forjou uma resposta que, xerocada, foi afixada em todos os botequins de Viamão: “Caro Vitalino, agradeço pelo esforço na tentativa de arrecadação aumentada. E também pela guerra declarada à bicharada. As camisinhas serão por mim usadas contra a oposição. Viva o Viamão atrevido e o exemplo que o nobre correligionário está dando ao mundo”.

Padre Antônio questionou a veracidade de tal documento e para combatê-lo Vitalino saiu com outro, este assinado por ele mesmo: “O padre nunca foi santo, nem sabe o que é água benta. Mas se encontra uma virgem pela frente, logo ele a arrebenta”.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (II)

Vitalino não tinha jeito mesmo. No mesmo dia de seu quase funeral, conheceu uma viúva que, em prantos, pedia clemência. Entusiasmou-se com a bondade de Dona Rosinha, a viuvinha e arriscou o que classificou de um “galanteio educado”: “Sinto muito pela morte de seu marido. Não tive a felicidade de conhecê-lo, mas sei que ele tinha muito bom gosto. Se algum dia a senhora sentir falta dele, por favor, dê para mim a preferência”, disse. Apesar de receber um sonoro tapa no rosto, Vitalino não desanimou e tanto fez que acabou amigo de Dona Rosinha, acompanhando à mercearia, ao açougue e até ao médico.

Foi nesse último que Vitalino entrou com a viúva para uma consulta. Ela sofria de “corrimento” e não sabia como falar com o Doutor Élcio. A filha mais velha de Rosinha logo corrigiu Vitalino: “Não fala “corrimento na buceta”, fala “corrimento na vagina”“. E lá foram Vitalino e Rosinha para o consultório. Na ante-sala ficou a Margarida. Quinze minutos depois o médico ainda não sabia o mal que atacava Rosinha. “Ela está com um problema na... um problema na...”, repetia Vitalino, não se lembrando do conselho da enteada Margarida. O médico já estava nervoso até que Vitalino levantou-se, abriu a porta do consultório e gritou para que os outros cinqüenta pacientes ouvissem:

“Margaridinha, qual foi mesmo o apelido que você colocou na buceta da sua mãe?”

E Vitalino entendia mesmo da genitália feminina. Tanto que era o guia de caixeiros-viajantes que passavam por Viamão. Um deles quase irritou o cicerone. Depois de um mês na cidade, perguntou ao Vitalino onde ele encontraria uma mulher da vida. “Lá na égua”, respondeu o guia que logo passou a acompanhá-lo. Os dois desceram uma ladeira, atravessaram um brejo e, na margem de um rio, encontraram uma égua amarrada. O viajante, afoito, apressou-se em desabotoar a calça, puxou o animal até um pequeno barranco e, já ofegante, ouviu o grito do Vitalino: “Ô jegue, essa égua é só para a gente atravessar o rio. As mulheres moram do lado de lá e não temos ponte por aqui”.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Vitalino e sua República Atrevida (I)

Magno Madureira

Naquela quarta-feira esbranquiçada pela chuva fina, Vitalino acordou, como sempre, amarelo e trêmulo. Esperou que o primeiro bar abrisse e foi lá, bem na praça do Carmo, que recebeu a notícia: “Juquinha morreu”, anunciou o sacristão Leonel. Logo os sinos soaram em ritmo fúnebre, e Vitalino começou a beber no compasso das badaladas. Afinal, já diziam que Juquita havia morrido de desgosto, por ter brigado com Vitalino uma semana antes. Roubaram uma galinha do Juquita e o Vitalino, que sequer comia franga, acabou pagando o pato.

Cinco horas mais tarde o corpo do Juquita já estava pronto para ser levado ao cemitério. E devidamente encomendado pelo sacristão Leonel que, nessas horas, se passava até por cardeal. Com parâmetros, a bíblia e um discurso que sempre se repetia a cada velório. Vitalino hesitava: temia visitar o morto e ser criticado. Mas decidiu e foi lá. Entrou pela casa de Juquita como se fosse membro da família. Bebeu à vontade, almoçou, falou das virtudes e dos pecados do morto e se encarregou de fechar o caixão. Tudo pronto, ele ordenou a saída rumo ao cemitério.

Com ar de quem dava mesmo as ordens, como se o defunto fosse seu, Vitalino pegou logo a primeira alça do caixão. “Aqui eu seguro, pois sou o prefeito e estou representando a municipalidade”, disse-lhe o chefe do Executivo Municipal, o Nuquitão. Quando segurou a segunda alça foi a vez do sacristão Leonel reclamar: “O corpo foi encomendado por mim e eu quero ter a honra de levar parte dele”. Na próxima alça, um filho do Juquita se aproximou e Vitalino rapidamente passou para a quarta, que ninguém segurava ainda. Foi aí que o delegado Zizito se aproximou e bem autoritário ordenou: “Como chefe da força pública quero ter o prazer de dividir esse peso”.

Vitalino olhou para os lados, passou por todos os lados do caixão e não encontrou outra alça. Indignado, esbravejou diante do espanto das beatas que puxavam uma “salve-rainha”: “Querem saber de uma coisa? Pois enfiem esse defunto no cú”.

Passada a ressaca, e novamente amarelo, Vitalino fez uma confissão pública, no bar do Leci. Iria mudar de vida; só beberia em festas de amigos, onde a pinga necessariamente seria de graça. Logo a promessa se espalhou. O prefeito cuidou de ajudar, doando um terreno da prefeitura para que Viltalino começasse vida nova. Fazendeiros doaram sementes e até uma cabrita que o premiado trocou no dia seguinte por uma garrafa de cachaça. O padre Antônio celebrou três missas: duas em ação de graças pela mudança de vida anunciada por Vitalino; uma terceira, excomungando o pobre coitado.

Ninguém mais acreditava na promessa feita no bar do Leci. Até que o padre, o delegado, o prefeito e os familiares de Vitalino decidiram enterra-lo vivo. O que ele prontamente aceitou. “Afinal não tenho jeito mesmo para o trabalho”, chegou a comentar. Feito seu único pedido, o de ser enterrado ao lado do amigo Juquita, lá seguia o enterro, quando um piedoso paroquiano se aproximou, fez cócegas no corpo do defunto-vivo e implorou: “Não deixe que eles enterrem você vivo.Você já tem um terreno de cultura e vou lhe dar meio saco de arroz para você começar a vida”.

“O arroz é com casca ou sem casca?”, perguntou Vitalino abrindo só um dos olhos, tamanho era o conforto em que se achava. “É com casca, para você plantar e se tornar um agricultor, ganhar dinheiro...”, respondeu o paroquiano. Já com os dois olhos abertos e mostrando indignação, Vitalino retrucou: “Então, toca o enterro”. Só não chegou a ser sepultado porque se recusou a cumprir uma determinação do delegado Zizito, como estava vivo, ele próprio deveria cavar a sepultura. “Se até para morrer é preciso fazer força, melhor ficar vivo”, justificou mais tarde e já de volta ao bar do Leci.

Modus Operandi da República Atrevida

Prezados Madureiras, adendos e outros que aqui adentram,

Esse blog foi criado para compartilhar alguns contos e poesias de meu pai, José Magno Soares Madureira. São poucos escritos a serem publicados, mas dá para matar a saudade dele, rir, chorar, parar para pensar na vida e sorrir depois de tudo.

Começaremos pelo maior conto, "Vitalino e sua República Atrevida", divido em 4 ou mais publicações. Esse conto não está acabado, mas a sua irreverência e graça são suficientes para mostrar os traços dessa república.

Em seguida, passaremos para o "Discurso", o comunicado ao "Sr. Síndico" e o "Revide do Bichano", duas poesias e um breve conto, quem sabe, inspirados na vivência da atrevida república.

Depois dessas publicações, o blog será aberto para quem quiser contar um história, um causo ou qualquer outra coisa inspirada ou vivenciada na república atrevida de Viamão.

O blog é aberto para comentários, elogios, xingos, correções ortográficas gramaticais e reclamações. Fiquem à vontade para comentar!

Abraços

Frederico Madureira